Rainier Grutman, Marlon Coí Rojas Daniel Soares Duarte Refração e reconhecimento

Tradução
Refração e reconhecimento: O multilinguismo literário na tradução [Refraction and recognition: Literary multilingualism in translation]

Rainier Grutman University of Ottawa | Universidade Federal de Pelotas
Traduzido por Marlon Coí Rojas sob a supervisão de Daniel Soares DuarteUniversity of Ottawa | Universidade Federal de Pelotas

Textos que colocam diferentes línguas em primeiro plano representam desafios incomuns para tradutores e estudiosos da tradução. Este artigo procura oferecer algumas ideias sobre o que acontece com a literatura multilingue na tradução. Primeiro, os escritos de Antoine Berman sobre tradução são usados para reformular questões de perda semântica em termos dos fundamentos ideológicos da tradução como prática cultural. Isso leva a uma consideração mais ampla dos aspectos contextuais envolvidos na “refração” de línguas estrangeiras, como a posição relativa da literatura traduzida na “República Mundial das Letras” (Casanova). Baseando-se em um estudo de caso canadense (Marie-Claire Blais na tradução inglesa), sugere-se que relações assimétricas entre literaturas dominantes e dominadas não precisam ser negativas per se, mas podem levar ao reconhecimento de escritores minoritários.

Palavras-chave:
  • multilinguismo e literatura,
  • tradução,
  • minorias na literatura,
  • literatura franco-canadense (1900–1999),
  • Marie-Claire Blais,
  • Ralph Manheim,
  • Ray Ellenwood,
  • Antoine Berman,
  • Pierre Bourdieu,
  • Pascale Casanova
Índice

0.Introdução

A visão amplamente difundida de que a tradução “em geral” envolve não menos que duas línguas (muitas vezes chamadas de idiomas “fonte” e “alvo") faz jus à maioria das transferências traducionais entre literaturas. No entanto, uma teoria da tradução não pode limitar-se aos cenários mais comuns ou plausíveis (isto é, se pretende “examinar”, de acordo com o significado original do verbo grego theôrein). Ela também deveria incluir maneiras excepcionais, marginalmente significativas e até mesmo “anormais”, nas quais a literatura foi de fato traduzida. Afinal de contas, exceções são conhecidas por levar à revisão de regras previamente aceitas universalmente, e leis científicas só duram enquanto não são contestadas por fatos novos.

As páginas a seguir abordam uma dessas exceções. As regras do comprometimento traducional, como costumam ser formuladas, estão fadadas a variar, ainda que ligeiramente. Refiro-me às instâncias em que o texto a ser traduzido não é nitidamente redigido em um idioma, mas um composto de diferentes vertentes de linguagem. Textos desse tipo representam desafios incomuns para tradutores individuais e para os Estudos da Tradução, especialmente se relações desiguais e desequilíbrios de poder entre as línguas entram em jogo. A seguir, adoto uma abordagem em duas etapas. Primeiro, levanto alguns dos problemas textuais comumente envolvidos na transferência de obras literárias multilíngues. O trabalho sobre tradução de Antoine Berman me ajudará a reformular questões de perda semântica em termos do funcionamento ético e ideológico que sustenta a tradução como prática cultural. Isso, por sua vez, levará à consideração de certos aspectos contextuais que, com frequência, ditam opções traducionais. No decorrer do argumento, espero deixar claro que o tratamento dado às línguas estrangeiras na tradução está vinculado ao contexto e pode, como tal, estar relacionado à posição relativa da literatura traduzida no mapa da “literatura mundial”. Este último é concebido, segundo as linhas de pesquisa realizadas por Pascale Casanova, discípulo de Bourdieu, como um espaço muito mais conflituoso do que o que Goethe tinha em mente quando cunhou o termo Weltliteratur (literatura mundial), em 1827. Como exemplo da parte francesa do Canadá, e mais especificamente das traduções estadunidenses e anglo-canadenses da ficção de Marie-Claire Blais, veremos que essas relações assimétricas (i.e. desiguais) entre literaturas dominantes e dominadas não precisam ser negativas per se, mas pode indiretamente levar ao reconhecimento de escritores minoritários.

1.O que acontece com o multilinguismo na tradução?

1.1O Heterolinguismo explicado

Antes de nos perguntarmos o que exatamente acontece com línguas estrangeiras (e variedades de línguas) na tradução, pode ser útil refletir brevemente sobre seu uso literário. Chamei este fenômeno de heterolinguismo para evitar confusões desnecessárias com situações da vida real derivadas de contato da língua, como bilinguismo social ou diglossia. É necessário enfatizar essa questão, pois não compartilho a ênfase às vezes colocada sobre as qualidades miméticas do multilinguismo. Tais qualidades, em minha opinião, não esgotam o amplo leque de possibilidades oferecidas pela justaposição ou mistura de línguas na literatura. Mesmo em textos cujos universos ficcionais afirmam retratar a sociedade, “o realismo” permanece em grande parte uma questão de “ilusionismo” habilmente trabalhado, como Guy de Maupassant sugeriu no prefácio bastante reimpresso de seu romance Pierre et Jean (1882). Devido a suas manifestações variadas, o heterolinguismo é um fenômeno multifacetado demais para ser comodamente incluído sob o título de “realismo” (ver Grutman 1996; 2002). As leituras miméticas não explicam como as línguas interagem entre si dentro dos limites de textos cujo uso de línguas estrangeiras muitas vezes vai além do espelhamento da sociedade ou da suposta “tradução” da realidade.

Meu segundo motivo para escolher o heterolinguismo é sua herança mista, grega e latina. É verdade que essas mesmas raízes infelizmente tornam a palavra opaca em inglês.11No meu holandês nativo, anderstaligheid (cf. Alemão Anderssprachigkeit) tem um tom muito mais sensato; o francês acadêmico, com sua pronunciada propensão à etimologia, também foi capaz de acomodar meu neologismo (veja Moura 1999: 73–78; MacNeil 2003). É verdade também que meu termo se parece muito com a “heteroglossia” de Mikhail Bakhtin e pode até descrever fenômenos semelhantes, mas de uma perspectiva completamente diferente (Grutman 1993. 1997: 41–44). Enquanto estou em grande parte interessado no primeiro plano das línguas estrangeiras, por qualquer motivo, por qualquer meio e com quaisquer efeitos, Bakhtin enfoca a interação dialógica de estilos de fala socialmente diferenciados dentro de uma dada língua. Essas “vozes sociais”, como Bakhtin (1981: 263) as chama, podem no entanto não corresponder, e na maioria das vezes não correspondem especificamente, a línguas (apesar do que algumas traduções de seus ensaios fazem crer).22O perigo de confundir o conceito de Bakhtin com o “multilinguismo” é muito maior se o lermos em francês ou até italiano, já que essas versões consistentemente traduzem erroneamente “raznorečie” (uma palavra obsoleta para “contradição” segundo o Oxford Russian dictionary, mas recuperada por Bakhtin em um movimento excepcionalmente heideggeriano) como “plurilinguisme/o” (ver Grutman 1993: 212–214). A diferença entre as duas abordagens talvez possa ser mais bem descrita com a ajuda de um conceito que costumava ter alguma vigência na estilística, a saber, o “princípio da polivalência” (Ullmann 1964: 9). Em termos práticos, esse conceito significa que “o mesmo dispositivo pode produzir vários efeitos”, ou seja, ter mais de uma função em um texto e, inversamente, “o mesmo efeito pode ser obtido por vários mecanismos” (Ullmann 1964: 20).

Em princípio, os textos podem dar igual proeminência a duas (ou mais) línguas ou adicionar uma aspersão flexível de outras línguas a uma língua dominante, claramente identificada como seu eixo central. A última solução é muito mais comumente encontrada, e a quantidade real de material linguístico em primeiro plano varia muito. Para um poeta romântico como Gérard de Nerval, um pequeno título espanhol (El desdichado) foi o suficiente para evocar paisagens exóticas e valentes cavaleiros. O escritor de ficção, por outro lado, pode precisar incorporar amostras maiores de língua estrangeira – ocupando parágrafos inteiros ou mesmo páginas, como em Guerra e paz de Tolstói e Tristram Shandy de Laurence Sterne – ou fazer uso repetido delas, a fim de obter o efeito desejado. A seguir, três dos exemplos mais marcantes do heterolinguismo do século XX, em que as línguas estrangeiras são destacadas no começo, no meio e no final de um romance, respectivamente.

O livro que muitos consideram ser a obra-prima de Guillermo Cabrera Infante, Tres tristes tigres (1965), abre com um prólogo hilário em uma mistura de espanhol cubano e inglês americano que evoca ironicamente a vida na Havana controlada pelos EUA em 1950. Antes dele, Thomas Mann deixou seu personagem Hans Castorp transmitir seus sentimentos em um francês difícil para a emigrante russa Clawdia Chauchat em um capítulo inspirado na língua, ameaçadoramente intitulado “Walpurgisnacht” [A Noite de Santa Valburga] e visivelmente colocado no centro de A montanha mágica (Der Zauberberg, 1924). Um caso ainda mais espetacular é Juan sin tierra, de Juan Goytisolo (1975). No final desse intimidador romance, o castelhano (a língua dominante da Espanha e também a do narrador) gradualmente se transforma em árabe, a principal língua falada na margem oposta do Mediterrâneo. Essa transformação, tanto mudança cultural quanto transferência puramente linguística, é completada em três ou quatro etapas, durante as quais o espanhol europeu “normativo” se torna um espanhol americano “slangy (em linguagem popular)” (com um sotaque cubano) e depois se transforma em um dialeto árabe norte-africano antes de assumir o disfarce de citações da 109ª sura do Alcorão (transliterada em letras romanas). A metamorfose está completa quando, na última página, versos árabes aparecem na própria caligrafia de Goytisolo. Porém, com o árabe sendo lido da direita para a esquerda, não chegamos ao fim, mas sim ao começo da história. As palavras finais do romance, portanto, paradoxalmente, tornam-se suas primeiras palavras, e o leitor pode começar de novo (ver Kunz 1993).

1.2Questões textuais: Apagando diferenças (exóticas)

O que tende a acontecer com textos como esses na tradução?O júri ainda está deliberando essa questão, ou assim sugere uma análise da fortuna crítica. Em um livro didático projetado para o ensino de tradução nos departamentos de literatura comparada dos Estados Unidos, André Lefevere dedica uma pequena seção a “Palavras estrangeiras”. Segundo ele, “uma solução oportuna, usada com bastante frequência, é deixar a palavra ou frase estrangeira não traduzida e acrescentar uma tradução entre parênteses, ou mesmo inserir uma tradução no corpo dos textos um pouco mais tarde” (1992: 29). O caso da tradução incompleta do heterolinguismo também é estudado por Cees Koster, em uma revisão da tradução holandesa feita por Ton Heuvelmans do romance Trainspotting. Com base na cena de drogas que acontece em Edimburgo, o romance de Irvine Welsh mostra de forma livre o inglês escocês de sotaque carregado falado pelos jovens degradados que compõem o grupo. No passado, os tradutores holandeses poderiam ter optado por alguma gíria urbana comparável da Holanda (o ‘Rotterdams’ falado por antigos personagens populares de TV, Jacobse e Van Es, por exemplo), mas a prática traducional contemporânea defende a visão de que “o dialeto deveria não ser traduzido com dialeto”. Nas palavras de Koster: “elementos culturalmente específicos, especialmente vindos de culturas com as quais a cultura-alvo mantenha contatos estreitos, devem ser exotizados (o estrangeiro é mantido como tal no texto)”.33Minha tradução de: “Een paradoxale vertaalnorm: dialect moet niet met dialect worden vertaald. De heersende norm dat cultuurspecifieke elementen, vooral van culturen waarmee de doelcultuur in nauw contact staat, exotiserend vertaald moeten worden (het vreemde wordt als iets vreemds in de tekst gehandhaafd) wou erdoor doorbroken worden” (Koster 1997). Henry Schogt (1988: 116) é igualmente cautelosa com quem procura equivalência dinâmica entre dialetos. Tendo comparado as traduções francesas, inglesas, alemãs e holandesas dos clássicos russos, ele também é da opinião de que “quando textos bilíngues ou multilíngues são traduzidos, como regra, apenas a língua principal do texto é substituída, os elementos estrangeiros permanecendo inalterados.” (1988: 114).

O uso de Koster da palavra “exotizar” revela sua familiaridade com os escritos do falecido Antoine Berman. Um dos críticos de tradução mais afiados da França e um tradutor talentoso (de espanhol e alemão), Berman condenou duramente o uso de “gíria parisiense [argot] para traduzir o lunfardo de Buenos Aires, o dialeto da Normandia para traduzir a língua dos Andes ou Abruzzese”, alegando que “um vernáculo se agarra firmemente ao seu solo e resiste completamente a qualquer tradução direta para outro vernáculo”. Tal transferência tem ainda menos chance de ser bem-sucedida na cultura francesa, onde o uso de dialetos invariavelmente evoca imagens provincianas: “Uma exotização que transforma os estrangeiros de fora para os estrangeiros domésticos acaba apenas ridicularizando o original” (Berman 2004: 286).

Já em meados dos anos 80, Antoine Berman formulou seus pontos de vista sobre a tradução em ensaios ainda bastante desconhecidos na América do Norte de fala inglesa, onde suas ideias foram disseminadas mais notavelmente por Lawrence Venuti.44Venuti (1995: 100–112; 1998a: 242). Para uma comparação dos modelos respectivos de Berman e Venuti, bem como uma possível saída de suas contradições, ver Lane-Mercier (1997: 57–64). Vou considerar dois ensaios em particular: “La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain” (originalmente acompanhada de sua tradução de Schleiermacher em 1985, e reimpressa postumamente como Berman 1999) e “La traduction comme ispreuve de l’étranger” (palestra proferida na Universidade de Toronto em 1984, disponível em inglês como Berman 2004). Aqui, Berman estabeleceu a base para uma “analítica da tradução”, tanto uma análise quanto uma crítica do “sistema de deformação textual que opera em toda tradução” (2004: 278). Não é incomum que os tradutores, ele argumentou, tentem colocar ordem no caos percebido de um texto, corrigindo o original na (falsa) esperança de aprimorá-lo. Um exemplo infame disso é o tratamento da prosa de Franz Kafka na maioria das traduções francesas (ver também Kundera 1993: 131–144; Meschonnic 1999: 319–342). A insistência de Kafka em usar as mesmas palavras sem procurar sinônimos, seu uso escasso de sinais de pontuação e seus parágrafos corridos, todos contrariam as concepções tradicionais francesas do que constituía estilo e “bom gosto” na escrita. Em nome da “racionalização” (Berman 2004: 280), seus tradutores usaram sinônimos onde eles sentiram necessidade, rearranjaram as frases de Kafka e dividiram seus parágrafos em unidades mais agradáveis aos olhos do leitor. Em outras palavras, apresentaram ao público francês um Kafka reparado, destruindo totalmente seu idioleto (e, portanto, sua idiossincrasia) no processo.

Berman (2004: 278) não mediu palavras quando classificou de “anexionistas” ou mesmo “etnocêntricas”55Nesse contexto específico, etnocêntrico deve ser entendido como “qui ramène tout à sa propre culture, à ses normes et valeurs, et considère ce qui est situé en dehors de celle-ci – l’Étranger – comme négatif ou tout juste bon à être annexé, adapté, pour accroître la richesse de cette culture “(Berman 1999: 29). Em inglês, palavras menos fortes foram usadas para transmitir a mesma ideia. Lawrence Venuti, que prontamente reconhece a dívida com Berman, fala de “traduções domesticadoras” (por exemplo, 2004: 334). as suposições subjacentes a tais práticas. Tidas como típicas do difícil relacionamento da França com a tradução propriamente dita (basta pensar nas recriações dos séculos 17 e 18 conhecidas como belles infidèles), suas origens remontam à Roma Antiga. Não foi (São) Jerônimo que afirmou, em uma carta muito citada ao senador romano Pamáquio, que o tradutor “não se fez presente na sonolência da erudição nem se contorceu traduzindo o estilo grosseiro da rusticidade, mas por direito de vitória levou o sentido cativo para sua própria língua, sed quase captivos sensus em suam linguam victoris iure transposuit” (citado em latim por Berman 1999: 32; a carta inteira aparece traduzida em Venuti 2004: 21–30, a passagem aqui citada: p. 25). Um vencedor, em outras palavras, não precisa respeitar a cultura dos povos subjugados: Vae victis!… Esse modo de tradução era exatamente o oposto do que Berman tinha em mente. Em vez de anexar culturalmente textos estrangeiros, como tem sido muitas vezes o caso, o tradutor ideal de Berman os respeitaria e acolheria em toda a sua estranheza. Ele mostraria que os aceitou traduzindo a letra em vez do espírito. Ao contrário dos tradutores franceses de Kafka, ele não reorganizaria o trabalho a ser traduzido para melhor se adaptar aos moldes de seus próprios preconceitos culturais, profundamente enraizados.

Reduzir as possíveis tensões entre línguas e variedades linguísticas é a extensão de uma estratégia de homogeneização mais ampla. De acordo com Berman, cuja especialidade é o campo da tradução da escrita latino-americana para o francês, “a sobreposição de idiomas é ameaçada pela tradução”.

A relação de tensão e integração que existe no original entre a língua vernácula e o koiné,66Um termo derivado do grego koiné diálektos ou “uso comum” e utilizado na sociolinguística para descrever uma variedade linguística padronizada com fins de comunicação inter-regional e oficial. entre a língua subjacente e a língua de superfície, etc., tende a ser exercida. Como preservar a tensão guarani-espanhol em [Augusto] Roa Bastos? Ou a relação entre o espanhol da Espanha e os espanhóis da América Latina em Tirano Banderas [de Ramón del Valle-Inclán]? O tradutor francês desse trabalho não confrontou o problema; o texto francês é completamente homogêneo.(Berman 2004: 287)

Berman é altamente crítico à homogeneização das traduções, precisamente porque elas apagam diferenças significativas e destroem padrões semânticos e sintáticos subjacentes. Elas podem parecer mais “homogêneas”, mas são na verdade mais “incoerentes” do que os originais (2004: 284–285).

Isso se torna ainda mais evidente quando a língua-alvo de uma tradução não é outra senão a língua estrangeira embutida do texto de origem.77Para uma breve análise do que acontece com os gracejos franceses de D. H. Lawrence na tradução francesa, ver Grutman (1998). Trabalhando em versões belga-francesas de textos em prosa flamenga bilíngues, Meylaerts (2004: 220–228, 319–322) também notou uma tendência acentuada para a erosão da diferença linguística. Nesses casos, os elementos linguísticos que sinalizaram a alteridade no original correm o risco de terem seus significados indexicais invertidos e serem lidos como sinais “familiares” da Identidade (e vice-versa). Veja-se as traduções francesas e alemãs do poema notoriamente heterolíngue The waste land (analisado por Frank e Bödeker 1991, baseado no material fornecido por Ilse Suis, ver 1991, 55 n. 17) de T. S. Eliot. Como se vê, nenhum tradutor, de nenhum país, tentou traduzir as citações em língua estrangeira do poema, mas optou-se por mantê-las intactas, mudando radicalmente seu impacto geral: linhas não traduzidas de Baudelaire, Verlaine, Nerval e Wagner, que contribuíram para o caráter hermético do original, tornaram-se facilmente inteligíveis para leitores de versões francesas ou alemãs. O que era originalmente estrangeiro e internacional tornou-se eminentemente legível e nacional. O oposto é igualmente verdadeiro: as citações da literatura inglesa familiares aos leitores britânicos de Eliot perdem seu imediatismo na tradução. Pior: sem serem traduzidas, essas mesmas linhas em inglês destacam-se como uma ferida aberta e transformam o que deveria ser mais ou menos “familiar” em algo totalmente “estrangeiro” (como é o caso das citações de Shakespeare na maioria das traduções francesas de The waste land, bem como na versão alemã de Ernst Robert Curtius).

1.3Questões contextuais: Transferências assimétricas, trocas desiguais

Verdade seja dita, com frequência os tradutores de textos multilíngues se encontram em uma situação sem saída. Ao atender a um público presumivelmente monolíngue, podem ser levados a evitar as diferenças linguísticas destacadas no original. Por razões de conveniência, muitos tradutores anulam em grande parte os efeitos que um escritor pode ter procurado obter com o entrelaçamento de idiomas. Os tradutores de ‘híbridos’ linguísticos que querem transmitir uma ideia do equilíbrio do texto original entre os idiomas, por outro lado, vão contra o monolinguismo institucionalizado. Eles enfrentam com frequência uma batalha penosa. Suponhamos que por um momento eles consigam convencer tanto seus editores quanto as editoras da conveniência de sua escolha: ainda precisam aguardar o veredito do público leitor anônimo, que não quer ser lembrado de que está lendo uma tradução, nem se importa muito com uma escrita que se perde entre muitas línguas. Em um país como os Estados Unidos, onde um filme legendado certamente naufraga nas bilheterias, faz pouco sentido tentar comercializar traduções de romances estrangeiros com passagens deixadas em outros idiomas. Seria um movimento totalmente contraproducente, indo contra a doxa da “domesticação fluente” identificada por Lawrence Venuti: “imposta por editores, editoras e revisores, a fluência resulta em traduções eminentemente legíveis e, portanto, consumíveis no mercado de livros”. (1995: 15).88Como toda regra, esta tem exceções significativas. Comentando sobre a escolha ética de manter o diálogo francês em Rayuela, de Cortázar, o tradutor americano Gregory Rabassa escreve: “Se Julio quisesse essas marcas em inglês, ele as teria traduzido para o espanhol em primeiro lugar. Também não vi razão para simplificar o livro para os leitores de inglês e insultá-los dessa maneira” (2005: 54). A versão altamente “fluente” de Rabassa para Hopscotch recebeu o Prêmio Nacional do Livro pela Tradução em 1966.

A ficção está longe de ser impermeável a tais atitudes. A viabilidade e o sucesso final de uma tradução que pretenda imitar as camadas multilíngues originais serão, em pequena medida, ditados por atitudes, gostos e hábitos predominantes do público em potencial. Em muitos casos, a escolha de uma opção sobre a outra excede questões de texto e estilo, mas pode estar relacionada a opiniões da comunidade-alvo em relação a idiomas estrangeiros e culturas em geral (e à tradução em particular). Os problemas advindos do heterolinguismo não podem, portanto, ser limitados apenas a questões textuais, não importa quão fascinantes e complexas elas possam ser. A tolerância ou intolerância a palavras estrangeiras pode ser considerada mais do que um índice de “familiaridade” e “estranheza”, de “mesmidade” e “alteridade”. Indo muito além dessas distinções, elas desnudam o desequilíbrio de poder entre literaturas em diferentes línguas e/ou de diferentes países.

Nada disso é inteiramente novo para quem está familiarizado com os recentes (e não tão recentes) avanços nos Estudos da Tradução, onde alguns acadêmicos têm trabalhado há um bom tempo com um conceito de tradução mais amplo, orientado para a cultura. “Não há igualdade nos contatos literários”, escreveu Itamar Even-Zohar (1978, p. 49), há trinta anos, após apontar a necessidade de distinguir “contatos entre sistemas relativamente estabelecidos que são, por consequência, relativamente independentes”, de “contatos entre sistemas não estabelecidos ou fluidos que são parcial ou totalmente dependentes de outro(s) sistema(s)”(1978: 46). Devido à sua dependência, as literaturas pertencentes à segunda categoria têm menos resistência interna a interferências externas do que as da primeira categoria. Alguns animais são de fato mais iguais que outros.

Em seu livro estimulante e provocativo sobre A República Mundial das Letras, Pascale Casanova levanta alguns dos mesmos problemas, embora de um ponto de vista epistemológico diferente. Seu tipo de literatura comparada incorpora muitos temas do trabalho de Pierre Bourdieu no “campo” da literatura francesa, que ela aplica e afina para obter melhores informações sobre o funcionamento da literatura mundial, não como um museu de obras-primas fetichizadas, mas como um “espaço literário mundial”. Um sistema global de relações de poder, no qual escritores de diferentes nacionalidades competem por um lugar ao sol. A tradução, argumenta Casanova, é um dos canais por meio dos quais os escritores podem acumular “capital simbólico” (Bourdieu), ganhar notoriedade e se tornar internacionalmente famosos. Como tal, essa intervenção nunca é inofensiva. Longe de ser “uma transferência puramente horizontal”, a tradução deve ser reconhecida pelo que é, ou seja, “o grande prêmio e a arma na competição literária internacional. Um instrumento cujo uso e propósito diferem, dependendo da posição do tradutor em relação ao texto traduzido” (2004: 133; cf. 1999: 188–189; 2002: 7–8). A ênfase é diferente, com certeza: de acordo com a teoria da ação social de Bourdieu (1998), Casanova se concentra nos influenciadores e agentes de poder da troca literária, isto é, nas pessoas envolvidas, enquanto Even-Zohar prestou mais atenção aos itens (textos, gêneros, modelos de escrita e convenções) circulando entre as literaturas e sendo importados para elas quando estava tentando conceituar seus “universais de contato/interferência literária” (1978/1990b). Apesar dessas discrepâncias, suas conclusões são surpreendentemente semelhantes: como forma de contato entre literaturas cujo prestígio e status diferirão, tanto sincrônica quanto diacronicamente, a tradução só pode ter uma natureza assimétrica. De fato, em uma versão posterior de um artigo de 1975, Even-Zohar reescreveu a frase acima citada, que agora diz: “Não há simetria na interferência literária” (1990b: 62).

Existem outras semelhanças.99Considerando o fato de que Casanova (1999: 189 n. 1; 2004: 374 n. 16) está ciente da abordagem polissistêmica de Even-Zohar – ela até cita as “Leis da Interferência Literária” – Seu subsequente (2002) descarte por atacado do trabalho anteriormente feito pelos Estudos de Tradução parece bastante injusto. Even-Zohar (1990a: 47; 1990b: 55–56) considerou duas formas principais de contato: (1) entre literaturas estabelecidas de prestígio comparável, e (2) entre literaturas de estatura e força variáveis, sendo uma deles (temporariamente ou não) mais fraca, ou (a) por ter sido estabelecida mais recentemente do que a outra, ou (b) porque está escrita numa língua de menor difusão, ou (c) porque está passando por um resgate parcial de sua hierarquia interna, ou seja, está “em crise”. Casanova, por sua vez, vincula mais estreitamente a posição relativa de uma determinada literatura nacional ao prestígio sociopolítico e literário da língua em que está escrita. São dois aspectos diferentes, pois o “crédito literário” dado a uma língua pode ser obtido “independentemente de seu capital estritamente linguístico” (2004: 135; cf. 1999: 191; 2002: 8). “Crédito literário” refere-se aqui ao “prestígio” estritamente literário ligado a uma língua em função de uma miríade de critérios que, apesar de subjetivos, não são menos eficazes na criação de diferenças. À primeira vista, a tipologia de Casanova (2002: 9–10) parece ser mais abrangente do que a de Even-Zohar. Em seu modelo, a troca literária através da tradução pode assumir uma das seguintes formas: (1) tradução de uma língua dominante para uma dominada (e vice-versa); (2) tradução de uma língua dominante para outra língua dominante; (3) tradução de uma língua dominada para outra língua dominada. Ela escolhe se concentrar no primeiro conjunto de situações espelhadas que, após uma análise mais detalhada, se sobrepõem à segunda categoria de contato literário de Even-Zohar – ou seja, aquela que ocorre entre um sistema literário dependente e um independente.

A diferença fundamental a se ter em mente, então, quando se estuda a tradução literária como fenômeno sócio-cultural e não puramente linguístico, seria a linha que separa as transferências entre, por um lado, literaturas potencialmente iguais ou pelo menos comparáveis e, por outro lado, pares claramente desiguais. Nesse último caso, tudo depende, é claro, da direção da transferência: sejam literaturas dominantes que “aprimoram” textos de heróis estrangeiros desconhecidos ou literaturas dominadas que selecionam e “transferem” clássicos, por assim dizer, do catálogo da literatura mundial. Casanova está certa em chamar de “incomensuráveis” (2002: 10) as respectivas apostas de ambas as configurações, e em alertar contra qualquer análise que as juntasse.

Voltando ao tópico em questão, vemos como isso se aplica ao tratamento de idiomas estrangeiros na tradução. A escolha de excluir ou manter o multilinguismo do original dependerá não somente da ética pessoal do tradutor (como defendido por Berman), mas também do status (in)dependente e o prestígio da literatura de origem em relação ao da literatura-alvo, bem como sobre as atitudes coletivas em relação às línguas de onde se está traduzindo, cada uma tendo sua importância sócio-cultural e peso relativo no mercado mundial de bens linguísticos. Essas atitudes, conforme apontado anteriormente, refletem-se nas políticas das editoras e, talvez menos ostensivamente, nas expectativas do público.

A fim de tornar a discussão menos abstrata, gostaria de ilustrar (e, espero, esclarecer) alguns dos argumentos mais teóricos feitos até agora, usando o Canadá como estudo de caso, ou, para ser mais preciso: a tradução em inglês do multilinguismo como aparece na prosa franco-canadense. As literaturas duais do Canadá podem não constituir um exemplo de tradução de uma língua dominada para outra língua dominada (a mais rara das configurações, segundo Casanova [2002: 10]), mas estamos na presença de dois “sistemas literários dependentes” (Even -Zohar), embora muito menos dependentes (se tanto) um do outro do que de literaturas do exterior (dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha para o inglês do Canadá, e da França para o caso do Quebec e do resto do Canadá francês).

2.Marie-Claire Blais em inglês

2.1Tradução literária, uma instituição canadense

Começo apontando a situação típica de um país onde tradutores literários passam a maior parte do tempo traduzindo colegas canadenses. Essa situação contrasta, não apenas com países unilíngues, nos quais os tradutores trabalham por definição com obras do exterior, mas também com a situação predominante em outros países bilíngues: belgas monolíngues que desejam ler seus compatriotas da outra comunidade linguística, por exemplo, normalmente precisam esperar por uma editora estrangeira trazê-los via tradução. Já os canadenses, durante a reforma geral da identidade que ocorreu após a celebração do Centenário da Confederação (1867), desenvolveram um novo sentido de ser e pertencer não mais unicamente baseado no passado do Canadá como Domínio Britânico. Nesse projeto de construção da nação, ênfase significativa foi dada ao “bilinguismo e biculturalismo”: uma Comissão Real com esse nome, co-presidida por André Laurendeau, o influente editor do diário de Montreal Le Devoir, e Arnold Davidson Dunton, ex-presidente da Canadian Broadcasting Corporation, publicou seu relatório final em 1969.

Não surpreende, portanto, que Philip Stratford tenha iniciado a história da tradução literária em 1972, quando o Secretário de Estado Liberal Gérard Pelletier “inaugurou um Programa de Subsídios de Tradução do Canadá”, na esperança de que disponibilizar o melhor da escrita do inglês para o francês e vice-versa fomentaria a compreensão mútua e o intercâmbio cultural” (Stratford 1991: 97). Em pouco tempo, a iniciativa federal geraria várias centenas de títulos. Somente em 1974, 66 traduções foram publicadas, mais do que o número total que havia aparecido nos dois séculos anteriores, entre 1760 e 1960! Ray Ellenwood (1983: 61, 64–65) calculou que o programa patrocinou nada menos que 452 traduções durante a primeira década de sua existência, com o trabalho em inglês inicialmente superando em muito o francês. A mesma década viu a criação de Prêmios de Tradução especiais em paralelo aos prestigiados Prêmios Literários do Governador Geral, a fundação da Literary Translators Association/Association des traducteurs littéraires [Associação de Tradutores Literários], e a adição da seção “Traduções” à pesquisa anual trimestral da Universidade de Toronto, “Letters in Canada” (Stratford 1991: 100–101).

Essa institucionalização das trocas literárias tem suas consequências, é claro. A primeira delas seria o status dos “campos literários” gêmeos do Canadá. Eles dificilmente podem ser considerados “autônomos” no sentido que Pierre Bourdieu tinha em mente, pois não puderam dissociar-se suficientemente das leis econômicas que regulam a circulação de bens culturais no mercado (ver Biron 2000: 28–32 para uma leitura similar sobre a literatura do Quebec). Na França, Bourdieu (1993; 1996) argumenta que as leis puramente econômicas não apenas não se aplicam. Elas foram até mesmo revogadas desde os dias de Flaubert e Baudelaire, com os ganhos econômicos de curto prazo tornando-se menos importantes do que o reconhecimento simbólico de longo prazo. Essa lógica peculiar transformou a literatura francesa em uma esfera autônoma, um estado dentro do Estado. Não é assim no Canadá, onde as correções ao livre mercado rotineiramente tomam a forma de financiamento governamental – em muitos aspectos, um disfarce moderno (embora muito meticuloso) dessa antiga dependência estrutural chamada mecenato. Sinais dessa dependência podem ser vistos em quase todas as etapas do processo criativo: de bolsas individuais para escrita e/ou viagens a subsídios globais para editoras, bolsas para tradutores, prêmios literários e fundos especiais para a divulgação de obras e autores.1010Vide o site do Conselho do Canadá: “Além de apoiar a criação, tradução, publicação e promoção de literatura canadense, a Seção de Redação e Publicação financia residências de autores, leituras literárias e festivais, bem como novas áreas de trabalho. atividades como poesia rap, contação de histórias e literatura eletrônica” (http://​www​.can​-acacouncil​.ca​/writing/).

Ao mesmo tempo, a tradução conseguiu fomentar um interesse mais do que passageiro na diferença cultural: os leitores canadenses falantes do inglês se apaixonaram por “la belle province” (como costumava ser chamado o Quebec) e redescobriram uma parte até então ignorada de sua identidade. Na tradução de Sheila Fischman, The hockey sweater de Roch Carrier tornou-se uma sinédoque do Canadá francês, e seu autor um ícone cultural. Talvez para sua própria surpresa, Carrier “vende mais no resto do Canadá do que em [seu] Quebec [nativo].” (Stratford 1991: 104; ver também Hébert 1989). Desde 1999, ele trabalhou como bibliotecário nacional do Canadá, após dirigir o Conselho do Canadá de 1994 a 1997. Junto a Gabrielle Roy, Marie-Claire Blais e Michel Tremblay, é cada vez mais consistentemente traduzido, o que explica muito por que tais escritores podem muito bem tanto ser os “fab four” da literatura do Quebec quanto refratados no Canadá de língua inglesa.

Terceiro, as iniciativas do governo e seus inúmeros benefícios trouxeram uma compreensão renovada da tradução como tal. Depois de anos discutindo traduções como se fossem textos originais – efetivamente não as considerando traduções – os críticos canadenses passaram por uma fase de julgamento de equivalência em termos de fidelidade/traição, antes de se concentrarem nos textos traduzidos como construtos discursivos (Mezei 1995: 136–137; 2003). Particularmente o francês quebequense, outrora obstáculo para os tradutores familiarizados apenas com o francês europeu, tornou-se desde então o locus de muitas reflexões originais, como se tornará evidente a partir de uma análise mais detalhada das traduções inglesas de Marie-Claire Blais, uma das mais importantes escritoras vivas do Canadá francês.

Primeira escritora do Quebec a ingressar na Academia Europeia,1111Em 1992, Marie-Claire Blais foi eleita para a Academia Real Belga de Língua e Literatura Francesa (Académie Royale de Langue et Littérature françaises de Belgique). Dois anos depois, ela se juntou às fileiras da Académie des lettres du Québec. Marie-Claire Blais (Cidade de Quebec, 1939) é autora de mais de vinte livros, todos traduzidos para o inglês. Muito cedo em sua carreira, Blais recebeu uma bolsa John Simon Guggenheim (1963) e o cobiçado prêmio Médicis (por seu sombrio romance de 1965, Une saison dans la vie d’Emmanuel), tornando-se assim a segunda canadense a receber um dos principais prêmios literários da França (Gabrielle Roy recebeu o prêmio Fémina em 1945 por Bonheur d’occasion, conhecido em inglês como The tin flute). Marie-Claire Blais foi traduzida por muitas pessoas diferentes ao longo de sua carreira: Sheila Fischman, é claro (ela é de fato a tradutora literária mais prolífica e versátil do Canadá, duas vezes vencedora do Governor General’s Award for Translation e a recente recebedora de um doutorado honorário da Universidade de Ottawa), mas também David Lobdell e Derek Coltman, cada um dos quais tradutor de pelo menos quatro de seus textos. Uma lista parcial de tradutores que trabalharam em algum dos romances de Blais incluiria Ralph Manheim e Ray Ellenwood (aos quais retornarei em breve), Merloyd Lawrence, Carol Dunlop, Charles Fullman e Michael Harris (essa lista foi tirada de Oore e MacLennan 1998).

2.2O debate sobre o joual

Como muitos outros escritores do Quebec que atuavam em meados da década de 1960 e início da de 1970, Marie-Claire Blais se interessava pela “literatura joual”, um estilo de escrita que consistia em destacar o francês de rua dos bairros operários de Montreal. Um marcador mais social do que geográfico, o joual supostamente recebeu seu nome de uma deformação da pronúncia francesa padrão de cheval (cavalo). Caracterizado por uma estrutura fonética distante da normativa, o joual contém grandes porções de palavras e expressões inglesas que não são mais percebidas como itens emprestados pelos próprios falantes. Conforme já esperado, o uso de tais gírias em ficção séria encontrou resistência considerável das classes educadas do Quebec. Outros, no entanto, passaram a ver essa variedade linguística como sinal do sofrimento franco-canadense sob o domínio colonial britânico e a exposição à cultura consumista americana, que se acredita resumida na linguagem dos proletários de Montreal. Como Jacques Godbout explicitamente colocou em um artigo de abril de 1964 com o título alarmista “Notre créole: le joual” [Nosso crioulo: o joual]:

O povo franco-canadense fala (…) uma forma aperfeiçoada do mesmo “franglais” que preocupava Étiemble. Uma forma integrada, de 190 milhões de anglófonos que pesam fortemente na gramática e na sintaxe de cinco milhões de francófonos: este último pouco a pouco inventou um crioulo, ou seja, uma língua típica de um povo colonizado, para defender-se, mas sem jamais ser obra de consciência lúcida.1212Minha tradução de: “Le peuple canadien-français parle … une forme avancée du franglais qui inquiète Étiemble, une forme intégrée, car les 190 millions d’anglophones pèsent lourd sur la grammaire et la syntaxe des cinq millions de francophones: ces derniers ont peu à peu inventé un créole, c’est-à-dire une langue de colonisé, pour se défendre, mais aussi sans que cela soit jamais l’oeuvre d’une conscience lucide” (Godbout 1994: 64). Quando René Étiemble (1964) atacou seus compatriotas por usarem muitas palavras inglesas por puro esnobismo, estava lutando contra um inimigo totalmente diferente do que o mencionado aqui, é claro. O uso de Godbout do termo “crioulo” é igualmente problemático.

Essa conexão específica explica por que o uso do joual era tanto uma postura literária quanto política. Em uma reversão típica dos valores relacionados à língua, o estigma original foi transformado em um símbolo positivo de identidade: ninguém mais no mundo fala francês como os franco-canadenses.

No entanto, em um nível estilístico, os problemas estavam fadados a surgir, já que não existe uma tradição real de escrever dialetos no mundo francófono. As convenções de prosa em francês não permitem usos “nobres” de formas locais ou socialmente marcadas de falar: em outras palavras, o dialeto é a língua dos caipiras, e só deveria ser utilizado para alívio cômico ou por razões de exotismo, para fornecer alguma ‘cor local’. Em uma tendência típica das atitudes paternalistas do século XIX, escritores como George Sand e, mais tarde, Guy de Maupassant, deixaram seus personagens camponeses expressarem-se no patois de Berry ou da Normandia, mas tais violações à norma linguística foram toleradas apenas em discursos especificamente indiretos (isto é, diálogo claramente separado da voz do narrador). Émile Zola causou um grande alvoroço quando, em L’Assommoir (1877), permitiu que o argot parisiense de Gervaise Macquais se misturasse progressivamente com a linguagem de seu narrador – e, mesmo na mentalidade francesa, o argot é um passo acima do dialeto convencional!

Por muito tempo, as coisas não foram muito diferentes no Canadá francês. Adjutor Rivard (1914) e outros membros da “Société du parler français” de Quebec encorajaram o uso de expressões francesas rurais e arcaicas para distinguir a literatura canadense daquela escrita na França, mas nunca consideraram a possibilidade de escrever textos inteiros no dialeto, uma prática considerada tabu. Ainda na década de 1950, monsenhor Félix-Antoine Savard (1953) lembrou a seus companheiros escritores o papel moral que desempenhavam: “O escritor possui certa autoridade em questões linguísticas; deveria mostrar-se digno dessa confiança”. Um escritor, segundo ele, deve prestar atenção à riqueza da língua que o cerca, mas é seu dever fazer uma seleção e apresentar ao público leitor apenas “o melhor, o mais claro, o mais puro, o mais expressivo, o mais adequado ao gênio de sua língua”.1313Minha tradução de: “On confie à l’écrivain une certaine autorité sur la langue; il doit se montrer digne de l’exercer” (Savard 1953: 270) e “le meilleur, le plus clair, le plus pur, le plus expressif, le plus conforme au génie de sa langue” (1953: 271). Como Rivard, ele defendia o uso (embora parcimonioso) de palavras tipicamente franco-canadenses que há muito tinham sido esquecidas na França. Bastante tolerante ao patois, na medida em que expressava a pureza ancestral dos camponeses e fazendeiros de Quebec, o bispo tinha pouca ou nenhuma paciência para “outro idioma”, ouvido especialmente em “nossas cidades industrializadas”, e que nada mais é do que joual avant la lettre:

Logo, empréstimos americanos e todo tipo de palavras transmitidas de qualquer forma por importação, moda e turismo, são abundantes. Se acrescentarmos a isso alguma permissividade no comportamento, alguma frouxidão na pronúncia, mesmo entre a nossa burguesia, o todo deve nos preocupar.1414Minha tradução de: “Là sévissent en pleine liberté l’anglicisme américain, et tous les mots charriés pêle-mêle par les importations, les modes, le tourisme. Que si vous ajoutez à cela je ne sais quoi de relâché dans la tenue, de ramolli dans la prononciation, même de notre bourgeoisie, l’ensemble a de quoi nous inquiéter” (Savard 1953: 274).

Os futuros escritores serão capazes de “purificar toda essa questão linguística?”, ele perguntou, incrédulo, ao público. Uma década depois, vários romancistas, contudo, começariam a incorporar o joual em sua escrita. Recorrendo às complexidades do discurso indireto livre, eles apagaram as fronteiras entre a fala dos personagens e a voz do narrador. Este foi o caso de Pleure pas, Germaine de Claude Jasmin, Cabochon de André Major e, mais notadamente, Le cassé de Jacques Renaud, cujo título paradigmático combinou dois ingredientes-chave: contaminação linguística (‘être cassé’ é uma tradução literal de ‘ser quebrado’) e opressão econômica pela América do Norte inglesa. A participação de Marie-Claire Blais no debate tomou a forma de um romance: Un joualonais, sa joualonie (1973, publicado simultaneamente na França sob o título À Cœur joual), no qual ela apresenta ao leitor uma narrativa de fluxo de consciência em francês coloquial com joual pesado. Seu projeto geral é claramente satírico; tanto que, de fato, argumentou-se que esse romance apressou o declínio do joual como instrumento literário.

Un Joualonais… conta a história de Abraham Lemieux, vulgo Ti-Pit, que ganha a vida trabalhando para a Rubber Company local e dorme em uma pensão frequentada pela fauna urbana habitual. Seu discurso vem repleto de empréstimos e “misturas de empréstimos” (Haugen 1950) que estamos acostumados a ouvir no francês canadense falado: “business” (para affaires), “bum” (para clochard), “bicycle” (para bicyclette), “char” (para voiture) etc.1515[Nota do Tradutor] Respectivamente, “negócios”, “mendigo”, “bicicleta” e “carro”. Dada a referência do texto ser a tradução entre francês canadense e inglês, sempre que possível usaremos notas para traduzir os exemplos e citações, de modo a evitar acúmulos de referências e manter a clareza necessária. Outro personagem, Éloi Papillon, é um escritor de pequeno porte, um “écrivailleux”, que inveja o soberbo domínio de Ti-Pit do autêntico “joualon” da classe trabalhadora (imagina-se que Blais está zombando de seus colegas escritores que muito abertamente haviam flertado com o joual). “Papillon” (literalmente: borboleta [butterfly]) ocasionalmente muda para o inglês no meio da conversa, o que não é incomum em alguns francófonos de Montreal:

Et tu [Ti-Pit] veux peut-être savoir combien je gagne par année, hein, mon Christ?

  • C’est pas de mes maudites affaires.

  • Dix mille piastres, c’est ridicule, um salaire de famine dans La vaste Nord – Américaine, la femme en croque la moitié, le gouvernement vous laisse les os!

Avec ça, on peut même pas s’offrir un club-sandwich parjour! A very shitty business, my friend!(Blais 1973: 15)

E você [Ti-Pit] talvez possa querer saber quanto eu ganho por ano, hein, mon Christ?

  • Não é da minha conta.

  • Dez mil piastras! É ridículo, um salário escasso na vasta América do Norte, a mulher toma a metade, o governo te deixa aos ossos! Com isso você não pode conseguir nem um club-sandwich por dia! Um negócio muito ruim, meu amigo!! [Tradução nossa a partir de Blais 1973: 15]

O francês de Papillon é praticamente padrão na literatura de Quebec. “Mon Christ” e “maudit” são impropérios típicos no Quebec, onde perderam seu significado religioso original e ainda continuam a cumprir uma função coesa importante como marcadores de identidade, pois fazem os canadenses franceses se destacarem entre os falantes de outras variedades de francês (Grutman 1997: 168). A “piastra” (“piastre”) [abreviação de “piastre espagnole”] era um tipo de moeda usada nos tempos coloniais. Hoje em dia, é normalmente pronunciada “piasse” e usado como um apelido para o dólar canadense. Quanto à troca de código entre as duas últimas frases, pode muito bem ter sido desencadeada pelo uso de “club-sandwich”, um lanche tipicamente estadunidense (feito com três fatias de torrada em vez de duas) para o qual, de fato, nenhum equivalente francês está disponível.

2.3A tradução domesticadora de Manheim

Em sua tradução americana, o título obscuro do romance torna-se St. Lawrence blues, uma alusão cultural mais transparente ao St. Louis blues e, como tal, uma indicação da tentativa do tradutor (ou editor) de reorientar o texto em função de uma audiência estadunidense (Godard 1999: 516). Os leitores de língua inglesa não são informados se ou quando a mudança de Papillon do francês para o inglês ocorre. O texto deles é linguisticamente unificado, sendo o resultado das “estratégias de homogeneização” (Berman):

I suppose you want to know how much I make a year?

It’s none of my damned business.

Ten thousand smackers, it’s ridiculous, starvation wages in this great North American continent, my wife eats up half, the government leaves me the bare bones. It’s not even enough for a daily club sandwich! A very shitty business, my friend.(Blais 1974: 7–8)

Várias situações em Un joualonais… envolvem anglófonos reais. Ninguém, ainda que pouco familiarizado com o passado do Quebec, ficará surpreso ao saber que Jerry Faber, chefe de Ti-Pit na Rubber Company, e sua esposa, falam inglês. Eles moram em um bairro com o nome de “Upper-Nose Town” (Blais 1973: 32). Em um ponto durante uma nevasca de inverno, Ti-Pit e seu colega de trabalho Baptiste, que acabou de ser demitido por Faber devido a manchas recém descobertas em seus pulmões, são solicitados a remover neve na frente da porta do chefe. Eles podem ganhar algum dinheiro extra com isso. O que se segue é o relato de Ti-Pit, primeiro no francês original, depois na versão de Ralph Manheim para o mercado dos EUA:

… plus on avançait moins on allait loin, on avait la face morveuse et la poudrerie nous enfonçait son dard par les oreilles. …

  • J’ai déjà la crachote rouge à cause du spotting, dit Baptiste, mais y faut qu’on accroche not’ deux piastres, maudit, chus pas venu à Up-Nose pour cueillir des noisettes!

  • Et v’là qui cavernait l’ père Baptiste et que j’ pouvais pas lui arracher sa pelle des poings; au bout de trois heures de cette chiennerie-là on a fait l’escalier, les marches et Lady Faber a pu ouvrir sa chambranle: “How lovely! How lovely!… ”, qu’elle a dit, “I see the mountains…”. “Ouais”, que je lui ai dit, “mais y faut nous payer la traite asteur, mon vieux père Baptiste est pas fort, y branle même”.

  • Rentrez donc, my friends, dear fellows, qu’elle a dit, venez vous réchauffer chez nous. La bonne va vous préparer du café”.

  • On a donc sirupé not’ café à l’anglaise, y avait la bonne, un chien qui s’appelait Puss-Puss et que la dame appelait avec des cajoleries son pussy darling, et l’chauffeur et nous autres les p’tits pères.1616…quanto mais avançávamos, menos longe íamos. Tínhamos o rosto coberto de mucosa e a poudrerie comprimindo nossos ouvidos… Minha saliva já estava vermelha por causa das manchas, disse Baptiste, mas temos que buscar essas duas piastras, maudit. Eu não vim para o Up-Nose para pegar nozes! O senhor Baptiste cavou tanto que eu não conseguia tirar a pá dos seus punhos; depois de três horas laboriosas chegamos aos degraus e a Lady Faber conseguiu abrir a porta: “Howlovely!Howlo – vely!…”, disse ela, “I can see the mountains…”. “Que bom”, eu disse “mas você tem que nos pagar pelo serviço. O velho senhor Baptiste está debilitado e agitado.” Então entrem, my friends, dear fellows, disse ela, Venham e aqueçam-se. A empregada lhes preparará um café. Então nós tomamos um gole de nosso café inglês. Havia a empregada, um cachorro chamado Puss-Puss a quem a senhora chamava carinhosamente de pussy darling, o chofer e nós dois. [Tradução nossa a partir de Blais 1973: 33–34,sic]

(Blais 1973 : 33–34, sic)

The more we dug the less we were getting anywhere, our faces were covered with snot and the white stuff was squizzling into our ears…

“I’m spitting red already”, says Baptiste, “it’s those spots on my lungs, but dammit, we’ve got to snag those two bucks. I ain’t come up to Upper-Nose to pick daisies”.

So Pere Baptiste went on excavating and I couldn’t get the shovel away from him. By the time we’d broken our backs for three hours, the steps were done and Lady Faber was able to open her door. “How lovely! How lovely!” she says, “I can see the Mountains”. “Good for you”, say I, “but now you’ll have to pay us off. Old man Baptiste isn’t feeling so good, he’s got the wobbles”.

“But come in, my friends, dear fellows”, she says. “Come in and get warm. The maid will make you some coffee”.

So we sloshed down our Upper-Nose coffee. There were six of us, the maid, us two slobs, the chauffeur, and a dog by the name of Puss-Puss that the lady cootchy-cooed at and called pussy darling.(Blais 1974: 21–22)

Certo esforço foi feito para traduzir itens lexicais tipicamente franco-canadenses. Manheim não confunde “poudrerie”1717[Nota do Tradutor] “Fábrica de pólvora”, mas mais comumente a designação dada para a “neve levantada pelo vento como um pó fino”. com qualquer coisa que tenha a ver com “powder”1818[Nota do Tradutor] “Pólvora”, mas também “neve fresca”. (como o primeiro tradutor de Bonheur d’occasion, de Gabrielle Roy, famosamente fez),1919Edmund Wilson (1965, p. 172–173) relata a história da frase “Vers huit heures du soir, a poudrerie éclata”, que se tornou a primeira tradução em inglês (por nova iorquina Hannah Josephson): “Perto das oito horas da noite explodiram os pulverizadores”. Veja também o ensaio de um dos tradutores posteriores de Roy, Joyce Marshall (1991, p. 30). mas sabe que um “material branco” está voando durante uma nevasca. Ele também encontra um apropriado “I ain’t come” (“eu não vim”) para o original “chus [= je suis] pas venu” (“Eu não vim”). Mas nada sinaliza o movimento de ida e volta entre o francês e o inglês, culminando nos comentários irônicos de Ti-Pit sobre o “café à l’anglaise”. Ray Ellenwood, que usa essa tradução como um contra-exemplo para sua própria prática (veja abaixo), é da opinião de que Manheim faz “um bom trabalho ao tornar legível o fluxo da narração em inglês”, mas deixa o leitor com “pouca noção de como Blais enfatizou as diferentes formas de falar no próprio texto” (1995: 105). Nas palavras de um crítico, Manheim “parece não ter certeza de qual vernáculo ele deseja retratar” e, portanto, “faz uso de gírias inglesas e americanas, tanto contemporâneas quanto de época… Ele parece ter almejado um discurso universalmente não-gramatical” (Davies 1975: 133). A tradutora Sheila Fischman2020Ele não se sai melhor aos olhos de Joyce Marshall: “Manheim traduziu o joual no qual o livro é narrado por um jargão curioso, parte gramática ruim, parte gíria ultrapassada” (1991, p. 31). considerou o inglês do romance “tão neutro que só se pode supor que Manheim se aproximou da tarefa de tradutor armado apenas com seu conhecimento literário e linguístico”. Ela estimula os moradores de Montreal a lerem o original em vez da tradução, “e aperfeiçoarem seu joual no processo” (1975: 51)

Em sua tentativa de produzir um texto aos moldes de um romance americano em um cenário francês, Ralph Manheim sem dúvida facilita para o leitor estadunidense médio, que tem a maior parte da decifração feita para ele. Em conformidade com a estratégia de “domesticação fluente” apontada por Lawrence Venuti como o modo padrão de recepção da tradução americana, outra revisora formula o que deve ser considerado o elogio máximo: “Traduzir o joual de modo que você não esteja ciente de ler uma tradução é efetuar um milagre” (Waddington 1974: 5). As coisas nunca são tão simples assim; a solução de Manheim tem a clara desvantagem de suavizar muitas asperezas sociais e ideológicas que ambos, joual e inglês, emprestaram ao original. O que aparentemente temos aqui é um excelente exemplo de “forças inconscientes”2121Os tradutores, Berman argumenta, não estão necessariamente conscientes da violência que infligem a textos de outras culturas. O sistema de deformação que ele descreve opera “como uma série de tendências ou forças”, para as quais “todo tradutor está inevitavelmente exposto…, mesmo que ele (ou ela) seja animado por outro objetivo. Mais: essas forças inconscientes fazem parte do ser do tradutor, determinando o desejo de traduzir” (2004, p. 278). que fazem um tradutor agir em contradição com a atitude em relação à diversidade que pode professar em outras instâncias, pois não estou insinuando que Manheim, o tradutor da prosa altamente experimental de Günter Grass, foi conservador e deliberadamente frustrou as intenções de Blais. Ainda assim, seu trabalho em Un joualonais… pode ser denominado “etnocêntrico” (Berman) ou, menos severamente, “domesticador” (Venuti), na medida em que ele presta pouca atenção à luta subalterna (neste caso, franco-canadense), o que equivale a silenciá-la.

Fama internacional, ao que parece, tem um custo. St. Lawrence blues foi lançado pela Farrar, Strauss e Giroux, uma importante editora de Nova York, apenas um ano depois de ter aparecido em francês. É um sinal inconfundível de reconhecimento internacional em e de si mesmo. O agente da carreira americana de Blais foi o célebre crítico Edmund Wilson, um dos americanos mais instruídos sobre assuntos relacionados ao Canadá. Eles se conheceram em uma das viagens de Wilson para o norte, em setembro de 1962 (Wilson 1993: 152), o que foi comprovadamente decisivo para que a autora conseguisse uma bolsa da Fundação Guggenheim no ano seguinte. Em New Hampshire, no período de vigência dessa bolsa, Blais escreveu o romance que a projetaria ao cenário internacional: Une saison dans la vie d’Emmanuel. Os críticos gostam de relembrar o sucesso do romance na França, onde ele ganhou um prêmio graças, em grande parte, ao lobby de Yves Berger, editor literário de Grasset. No entanto, eu argumentaria que, a partir da visão geral da “República Mundial das Letras” de Casanova, um papel igualmente significativo poderia ter sido desempenhado pelo sistema estadunidense que foi a tradução do livro feita por Derek Coltman, com introdução de ninguém menos que Edmund Wilson, cuja opinião elevada da obra de Blais (ver Wilson 1965: 147–157) seria assim disseminada em todo o mundo. Os canais de distribuição global da Farrar, Straus e Giroux tornaram Marie-Claire Blais conhecida para um público muito maior; um público que, aliás, se estendia além dos falantes nativos, para incluir aqueles para quem o inglês (e não o francês) era uma segunda língua. O fato de o prefácio de Wilson ter sido reimpresso nas traduções italiana, mexicana e dinamarquesa (ver Oore e MacLennan 1998: 1–3) é sintomático do fluxo internacional do tráfego literário, e pode sugerir que algumas dessas versões foram, pelo menos em parte, as chamadas “traduções indiretas” (um fenômeno bem documentado na história da tradução, ver Stackelberg 1984; Toury 1995: 129–146). Outro sinal do status fundamental do prefácio foi sua tradução para o francês, feita pelo professor François Ricard, da Universidade McGill (para a edição de bolso de 1980 de Une saison dans la vie d’Emmanuel na série Quebec 10/10 de Alain Stanké). Quando a recepção norte-americana de um escritor canadense francês abre caminho para a crítica literária de Montreal, voltamos ao ponto inicial.

Coltman traduziria mais romances de Blais para a mesma editora, mas, por alguma razão, o contrato para a versão em inglês de Un joualonais, sa joualonie, foi para Ralph Manheim (1907–1992), um dos mais importantes tradutores no pós-guerra dos Estados Unidos (Venuti 1998b: 311). Conhecido especialmente por seu trabalho com o alemão, ele traduziu obras não-ficcionais controversas. Do Mein Kampf, de Hitler (em 1943, durante a guerra!) às correspondências de Freud com C. G. Jung. Suas traduções literárias incluem uma parte considerável do trabalho de Bertolt Brecht (Lefeem 2004: 249–251) e vários contos de fada dos irmãos Grimm, bem como o Quebra-Nozes, de Hoffmann, romances de Erich Maria Remarque, Hermann Hesse, Elias Canetti, Peter Handke e o ganhador do Prêmio Nobel Günter Grass, cuja importante trilogia Danzig (Die Blechtrommel, Katz und Maus e Hundejahre) foi disponibilizada por Manheim para o público de língua inglesa nos anos 1960. Sua segunda língua de origem foi a francesa, onde a preferência também parece ter sido direcionada para escritores mais difíceis: Louis-Ferdinand Céline (antes de mais nada), Michel Tournier e André Schwarz-Bart. Ele foi premiado com um “bolsa para gênios” da Fundação John D. e Catherine T. MacArthur em 1983: uma bolsa vitalícia, sem compromissos, de 60.000 dólares americanos (Venuti 1998b: 313).

Apesar de toda a sua exposição à literatura francesa, Manheim não foi educado com os elevados ideais canadenses sobre o bilinguismo oficial; não desenvolveu, portanto, um habitus canadense.2222Essa antiga noção escolástica (derivada dos hexis de Aristóteles via Tomás de Aquino) recebeu nova aplicação de Pierre Bourdieu (1985, p. 13), que define o habitus como um esquema de pensamento interiorizado social e culturalmente, “a disposição incorporada e quase-postural… de um agente atuante”. Como um hábito, um habitus é adquirido, não inato, mas diferentemente dos hábitos, que podem ser individuais e até idiossincráticos, habitus refere-se a disposições socialmente adquiridas. Os indivíduos os desenvolvem em contextos coletivos como famílias, escolas, ambientes de trabalho, todas as situações nas quais eles têm a oportunidade de aprimorar suas habilidades sociais: “o que o trabalhador come e, especialmente, a maneira como ele come, o esporte que ele pratica e o modo como ele o pratica, suas opiniões políticas e o modo como ele as expressa” (Bourdieu 1998: 8). Habitus adquiridos de forma diferente funcionam como “esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e divisão, gostos diferentes” (Bourdieu 1998: 8). Defendo que os textos que um tradutor escolhe traduzir e a maneira como os traduz são sinais de esquemas sociais similares incorporados. Isso explicaria sua pouca sensibilidade à conquista da identidade cultural por meio da diferença linguística, uma estratégia menos comum no “caldeirão cultural americano”, em que as minorias não anglófonas têm sido mais prontamente assimiladas no mainstream linguístico, abandonando sua linguagem original no processo, do que no chamado “mosaico canadense”. Os Estados Unidos não têm o equivalente da população franco-canadense, cuja presença no vale de St. Lawrence antecede a Confederação e de fato marcou o início da colonização europeia no que hoje é chamado Canadá. Sendo o princípio da igualdade de idiomas a condição explícita pela qual os líderes do Quebec se uniram à federação em 1867 (Kymlicka 1995: 118), seus descendentes não deixariam sua língua ser transformada em folclore, como aconteceu com seus primos de língua francesa em Louisiana e, mais tarde, na Nova Inglaterra. Desde a década de 1960, as atitudes em ambos os países divergiram substancialmente, com o fator linguístico no Canadá desempenhando muitos dos papéis normalmente associados à identidade étnica e racial nos debates americanos sobre o multiculturalismo.2323Entre outras coisas, porque os franco-canadenses formaram uma sociedade autônoma antes de serem incorporados à América do Norte britânica e, como tal, são uma “minoria nacional”, no uso do termo por Will Kymlicka (1995: 19), enquanto “grupos étnicos” (imigrantes que deixaram sua comunidade nacional para entrar em outra sociedade) não são. Kymlicka sabe, e lamenta, que a distinção (a seu ver crucial) entre minorias nacionais e grupos étnicos é muitas vezes negligenciada pelos teóricos políticos estadunidenses.

2.4A tradução estrangeirizante de Ellenwood

São precisamente esses tipos de atitudes que vêm à tona na tradução, ainda mais quando o texto-fonte é heterolíngue. Ray Ellenwood, por exemplo, é inflexível quanto a essa questão:

É verdade que lidar com uma mistura de idiomas em um texto traduzido é sempre uma dor de cabeça para a qual não há remédios fáceis. Mas, para Manheim, a questão obviamente não é de importância primordial. Ele está interessado em traduzir palavras, não falas. As soluções que encontra são boas para ele e seu público projetado, que se preocupa muito mais com uma boa narrativa do que com questões de identidade e integridade cultural no Canadá. Um tradutor canadense, por outro lado, entendendo a importância da identidade linguística nesse país, pode procurar alguma equivalência, alguma maneira de sugerir o que acontece de maneira tão óbvia, linguisticamente, no texto de Blais. [O baixo calão franco-canadense] “tabarnacle” [“tabernáculo”] é uma expressão peculiarmente canadense que não deve ser suavemente traduzida como “Santa Maria”. Tais perguntas são, ou deveriam ser, de interesse e importância para um público canadense. O que é específico sobre a nossa cultura continua a ser o único antídoto para a “pepsificação”, ou para o que Jacques Ferron chama (usando o inglês para o efeito) “ketchup em um pão, de ponta a ponta”. O problema é que a tradução de Manheim continua a ser a única disponível, tanto para os leitores canadenses quanto para os estadunidenses.(1984: 28, cf. 1995: 106)

Nascido e criado no oeste do Canadá antes de se mudar para Toronto, Ellenwood (Edmonton, 1939) procedeu de maneira inteiramente diferente ao traduzir o romance de Blais Les nuits de l’Underground (1978) como Nights in the underground (1979). Desde então, ele se tornou conhecido como tradutor de alguns dos escritores mais complexos do Quebec: o já citado Jacques Ferron, bem como o poeta surrealista Claude Gauvreau. Ao contrário da prática geral na América do Norte, onde os tradutores consideram “um elogio se seu trabalho não é reconhecido como tradução”, Ellenwood se orgulha de fazer exatamente o oposto: “Minha tradução chamará a atenção para si” (1995: 104 e 107).

Les nuits de l’Underground recebe o título de um bar onde os membros da comunidade lésbica de Montreal gostam de se reunir. O uso do joual é consideravelmente menor aqui, mas o romance contém partes consideráveis do diálogo em inglês, o que não facilita a tarefa do tradutor. Além disso, nenhum dos personagens é falante nativo do inglês: a maioria das intrusões “heterolíngues” na narrativa francesa é atribuída a uma mulher judeu-austríaca chamada Lali Dorman, médica de profissão que fala inglês de forma acentuada e às vezes unidiomática. Apesar de Blais não abordar a política da linguagem de forma tão dramática quanto em Un joualonais, sa joualonie, seria um erro encobrir a escolha de deixar que grande parte do diálogo do romance aconteça em inglês, que é apenas uma das muitas diferenças no grupo, que também inclui identidades sexuais, culturais, étnicas e religiosas. Sinalizar todas as mudanças para o inglês com itálicos e notas de rodapé teria sobrecarregado o texto com muitos dispositivos de distração, apesar de ainda assim não conseguir transmitir a diferença linguística. A solução encontrada por Ellenwood é uma compensação, deixando alguns trechos franceses não traduzidos onde havia o inglês no original. Nos casos em que Lali muda do inglês para o francês, ele também terá a mudança, mesmo mantendo um pouco da inércia do inglês de Lali. Essas estratégias conseguem fazer com que o leitor anglo-canadense saiba que as personagens do romance devem estar fazendo troca de código em idiomas que eles não dominam completamente. Vejamos as seguintes trocas entre Lali e Geneviève, sua amante francesa:

I am so happy to see you, chérie, let me help you now, and so, here you are, I hope we could have a few weeks together… you are skinny, did you work hard?

  • Où allons-nous, Lali?

  • It will be a longer drive because of the snow… but you will see, c’est une surprise pour toi

  • Here we are, I think, s’écria soudain Lali… We are out of town… take care in going out of the car, the wind is strong… Tu vois ce restaurant avec the red light? Quelqu’un nous attend là2424Estou tão contente de te ver, chérie, deixe-me ajudá-la agora, e então, aqui está você, espero que possamos ter algumas semanas juntas… você está magra, tem trabalhado muito? Où allons-nous,Lali? Será uma viagem mais longa por causa da neve… mas você verá, c’est une surprise pourtoi… Aqui estamos, penso eu, s’écria soudain Lali… Estamos fora da cidade… tome cuidado ao sair do carro, o vento é forte…Tu vois ce restaurant avec a luz vermelha? Quelqu’un nous attend là… [Tradução nossa a partir de Blais 1978: 74–75, sic]

(Blais 1978: 74–75, sic)

Na versão de Ellenwood, elas são quase idênticas, exceto por alguns detalhes: a estranha sintaxe de Lali é corrigida em uma ocasião (“I hope we could” [espero que pudéssemos] se torna “I hope we can” [espero que possamos]; outra possibilidade seria “I was hoping we could” [esperava que pudéssemos]) e “ce restaurant” [esse restaurante] se torna “le restaurant” [o restaurante], mudança que não pode ser relacionada a uma concepção geral.

I am so happy to see you, chérie, let me help you now, and so, here you are, I hope we can have a few weeks together… You are skinny, did you work hard?

Where are we going, Lali?

It will be a longer drive because of the snow… but you will see, c’est une surprise pour toi

“Here we are, I think”, cried Lali, suddenly. “We are out of town… Take care in going out of the car, the wind is strong… Tu vois le restaurant avec the red light? Quelqu’un nous attend là…”(Blais 1978: 52–53, sic)

Para todas as proporções e efeitos, Ellenwood se recusa a traduzir. Ele é motivado pela convicção de que a tradução tradicional pode acabar “assimilando o trabalho suavemente para o inglês” (1995: 106). Recusar-se a ocultar enunciados heterolinguísticos pode ser visto como uma característica da tradução vanguardista canadense, cujos praticantes, pelo menos, tentam deixar a voz do Outro ser ouvida.2525O status excepcional da estratégia de “não-tradução” de Ray Ellenwood não pode ser enfatizado o suficiente. Diante de um desafio semelhante, ao traduzir o prólogo bilíngue de Tres tristes tigres, Donald Gardner e Suzanne Jill Levine também decidiram deixar o espanhol, mas com uma inversão. Enquanto o original muda do espanhol para o inglês, a sua tradução inverte essa ordem e sistematicamente coloca a sentença inglesa diante da versão espanhola: “¡Arriba el telón! Curtains up!” Torna-se assim “Curtains up! Arriba el telón!”, Sem o ponto de exclamação invertido típico do espanhol (Cabrera Infante 1965: 17; 1971: 7). Tal reversão não é insignificante, pois amortece de forma eficaz o impacto da língua estrangeira em um leitor de língua inglesa que agora só é passivamente confrontado com uma tradução em espanhol do que acabou de ler em seu próprio idioma. Embora sua iniciativa tenha sido em geral bem recebida por outros tradutores (Mezei, Marshall), Ellenwood foi atacado na grande imprensa. Em 1979, o jornalista Keith Garebian chamou o estilo de Blais de “parte marmelada, parte conversa fiada política, pegajosa e quebradiça, concreta e abstrata, sensual e intelectual…” Pois, no que lhe dizia respeito, isso era em parte obra do tradutor: “Ray Ellenwood produziu um híbrido bilíngue atroz: “on demande à toi et moi if we were Jewish… ils ont dit they wouldn’t punish us”.2626Tradução nossa: [on demande à toi et moi se fossemos Judeus… ils ont dit eles não nos puniriam”] – [perguntaram a você e a mim if we were Jewish… eles disseram they wouldn’t punish us]. Nota do autor: The Montreal star, May 26th, 1979: E3, citado em Godard (1999: 509 e 517). Garebian não só não entendeu que o “atroz híbrido bilíngue” era na verdade Marie-Claire Blais; também não reconheceu que o inglês foi mantido porque foi colocado no original com um propósito.

Assim, o trabalho de Ellenwood sobre Blais é um bom exemplo da prática cultural dissidente que Lawrence Venuti chama de “tradução estrangeirizante”. Isso “significa a diferença do texto estrangeiro… por desestabilizar os códigos culturais que prevalecem na língua-alvo”. No entanto, como Venuti acrescenta rapidamente: “[n]o esforço de fazer o certo no exterior, esse método de tradução deve fazer o errado em casa, desviando suficientemente as normas nativas para encenar uma experiência de leitura exótica” (1995: 20). Para alguns, pode ser uma surpresa que as habilidades de leitura exigidas pela escrita bilíngue pareçam igualmente estranhas a um jornalista como Garebian, que mora em um país oficialmente bilíngue inteiramente baseado nas boas intenções de suas chamadas “nações fundadoras” para continuarem a viver juntas.

Se a tradução de fato consegue construir pontes entre as proverbiais “duas solidões” do Canadá, como era a intenção declarada do programa criado pelo Conselho do Canadá em 1972, é uma questão completamente diferente (Mezei 1994; 2003; Sugars 1996). O esforço do Canadá anglófono para entender o Quebec (ilustrado pela pergunta “O que quer o Québec?”, uma tradução política do famoso aforismo de Freud) tem sido amiúde considerado paternalista pelos próprios quebequenses, não por eles considerarem a iniciativa apoiada pelo governo federal como parte da campanha do ex-Primeiro Ministro Pierre-Elliott Trudeau em favor do bilinguismo oficial. Os intelectuais francófonos não diminuíram suas palavras. Escrevendo entre dois referendos sobre a soberania do Quebec, Jacques Godbout chegou ao ponto de sugerir que as traduções anglo-canadenses são em grande parte egoístas: “A tradução da literatura do Quebec durante os últimos vinte anos foi proporcional ao medo que o Canadá anglófono tinha de o Quebec se separar. Quem são eles, o que querem, o que estão escrevendo? Faça com que isso seja traduzido em dobro, para que possamos finalmente entender quem são essas pessoas que [estão] nos ameaçam[ndo] de extinção como canadenses” (1988: 84).

3.Observações finais: Refração ou reconhecimento?

Tornar-se-á claro que uma abordagem à tradução exclusivamente baseada em textos não pode chegar ao fundo do que é, de fato, um embate entre literaturas enquanto instituições. A abordagem necessária combinaria investigações contextuais da literatura como vetor de identidade (nacional) e estudos formais da literatura como corpo de textos com valor estético. A literatura, certamente, é os dois ao mesmo tempo, com a ênfase sempre mudando entre os pólos social e estético. Tradições literárias mais antigas e bem estabelecidas, como as da França, da Espanha ou da Inglaterra, conseguiram criar uma esfera quase que totalmente estética, criando um nicho para si mesmas, dentro do “espaço social” maior (Bourdieu) de seus respectivos países. Literaturas que surgiram mais recentemente (nos últimos duzentos anos, mais ou menos) têm se esforçado em sentido contrário, para estabelecer tal esfera de maneira relativamente livre de restrições políticas e socioeconômicas (Casanova 2004: 108–110; 1999: 154–157). Tais literaturas emergentes, sejam elas associadas às antigas dependências de impérios coloniais extintos, ou pertencentes a minorias nacionais da Europa, tendem a mostrar mais abertura à diversidade linguística do que os cânones firmemente estabelecidos das antigas potências imperialistas. Com bastante frequência, sua riqueza linguística foi “refratada” em vez de “refletida” (como André Lefevere costumava dizer) na tradução. No caso do uso literário do joual quebequense, podemos concordar com a visão de Sherry Simon de que “a intraduzibilidade estava inscrita nela” e que o choque social e cultural apresentado no uso do inglês “deve, de fato, continuar sendo um problema para a tradução. Tal era sua intenção e seu significado” (1992: 171–172). Como vimos, a especificidade cultural irredutível do joual não foi, de fato, uma parte menor do apelo inicial para os próprios quebequenses.

Em vez de lamentar a impossibilidade de traduzir o heterolinguismo, ou melhor, sua inevitável refração na tradução, pode-se tentar refletir sobre uma questão repetidamente levantada por Lefevere, mas cujas consequências não foram totalmente levadas em conta pelos estudos literários ou da tradução:

O trabalho de um escritor ganha exposição e atinge influência principalmente por meio de “mal-entendidos e equívocos” ou, para usar um termo mais neutro, refrações. Escritores e seus trabalhos são sempre compreendidos e concebidos contra um determinado pano de fundo ou, se preferirem, são refratados por um determinado espectro, assim como seu trabalho em si pode refratar trabalhos anteriores através de um determinado espectro.(Lefevere 2004: 240)

Em relação à tradução “etnocêntrica” de Ralph Manheim sobre a experimentação de Marie-Claire Blais no joual, é possível optar por denunciar o impulso anexionista do empreendimento (como tem sido o caso na crítica literária canadense), mas isso só aborda parte da questão. Traduzir a diferença linguística é uma faca de dois gumes. Dentro do quadro mais amplo das negociações interliterárias em andamento, feitas por Pascale Casanova, a refração não precisa ser inteiramente negativa, mas também pode ser considerada um sinal de reconhecimento por centros culturalmente prestigiados.

De um ponto de vista sociológico, a visibilidade e o prestígio (ou, nos termos de Bourdieu, o “capital cultural”) que Blais ganhou ao ser traduzida em Nova York por alguém tão respeitado como Ralph Manheim provavelmente superaram a “injustiça poética” que foi feita a seu texto no processo. Nova York (ou, em outros tempos e para outros escritores, Londres ou Paris) fez um favor a Blais elevando seu trabalho a um nível “universal”, que ela não poderia ter alcançado apenas através dos canais quebequenses ou canadenses. Uma das tristes verdades da “República Mundial das Letras” é que ela é baseada na desigualdade. As relações entre as literaturas (e as línguas nas quais estão escritas) são assimétricas por natureza, desiguais e até desequilibradas; por isso, quando Paris, Londres ou Nova York traduzem em nome do universalismo egoísta (um dos disfarces favoritos do etnocentrismo, de acordo com Casanova 2004: 154–157; 1999: 214–215), dão aos escritores de literaturas menores seu momento de fama, que pode durar algo entre os notórios “quinze minutos” de Andy Warhol e uma vida inteira. O reconhecimento através da refração é precisamente o que os escritores minoritários podem obter por serem traduzidos para idiomas globais, não importa quão imperfeito seja o produto final e quão injusto seja o processo.

Agradecimentos

As versões anteriores deste artigo se beneficiaram dos comentários de Justin Edwards e Benoît Melançon, bem como dos revisores externos da Target, a quem gostaria de agradecer por sua contribuição. Não é preciso dizer que todas as opiniões expressas permanecem minha única responsabilidade.

Notas

1.No meu holandês nativo, anderstaligheid (cf. Alemão Anderssprachigkeit) tem um tom muito mais sensato; o francês acadêmico, com sua pronunciada propensão à etimologia, também foi capaz de acomodar meu neologismo (veja Moura 1999: 73–78; MacNeil 2003).
2.O perigo de confundir o conceito de Bakhtin com o “multilinguismo” é muito maior se o lermos em francês ou até italiano, já que essas versões consistentemente traduzem erroneamente “raznorečie” (uma palavra obsoleta para “contradição” segundo o Oxford Russian dictionary, mas recuperada por Bakhtin em um movimento excepcionalmente heideggeriano) como “plurilinguisme/o” (ver Grutman 1993: 212–214).
3.Minha tradução de: “Een paradoxale vertaalnorm: dialect moet niet met dialect worden vertaald. De heersende norm dat cultuurspecifieke elementen, vooral van culturen waarmee de doelcultuur in nauw contact staat, exotiserend vertaald moeten worden (het vreemde wordt als iets vreemds in de tekst gehandhaafd) wou erdoor doorbroken worden” (Koster 1997). Henry Schogt (1988: 116) é igualmente cautelosa com quem procura equivalência dinâmica entre dialetos. Tendo comparado as traduções francesas, inglesas, alemãs e holandesas dos clássicos russos, ele também é da opinião de que “quando textos bilíngues ou multilíngues são traduzidos, como regra, apenas a língua principal do texto é substituída, os elementos estrangeiros permanecendo inalterados.” (1988: 114).
4.Venuti (1995: 100–112; 1998a: 242). Para uma comparação dos modelos respectivos de Berman e Venuti, bem como uma possível saída de suas contradições, ver Lane-Mercier (1997: 57–64).
5.Nesse contexto específico, etnocêntrico deve ser entendido como “qui ramène tout à sa propre culture, à ses normes et valeurs, et considère ce qui est situé en dehors de celle-ci – l’Étranger – comme négatif ou tout juste bon à être annexé, adapté, pour accroître la richesse de cette culture “(Berman 1999: 29). Em inglês, palavras menos fortes foram usadas para transmitir a mesma ideia. Lawrence Venuti, que prontamente reconhece a dívida com Berman, fala de “traduções domesticadoras” (por exemplo, 2004: 334).
6.Um termo derivado do grego koiné diálektos ou “uso comum” e utilizado na sociolinguística para descrever uma variedade linguística padronizada com fins de comunicação inter-regional e oficial.
7.Para uma breve análise do que acontece com os gracejos franceses de D. H. Lawrence na tradução francesa, ver Grutman (1998). Trabalhando em versões belga-francesas de textos em prosa flamenga bilíngues, Meylaerts (2004: 220–228, 319–322) também notou uma tendência acentuada para a erosão da diferença linguística.
8.Como toda regra, esta tem exceções significativas. Comentando sobre a escolha ética de manter o diálogo francês em Rayuela, de Cortázar, o tradutor americano Gregory Rabassa escreve: “Se Julio quisesse essas marcas em inglês, ele as teria traduzido para o espanhol em primeiro lugar. Também não vi razão para simplificar o livro para os leitores de inglês e insultá-los dessa maneira” (2005: 54). A versão altamente “fluente” de Rabassa para Hopscotch recebeu o Prêmio Nacional do Livro pela Tradução em 1966.
9.Considerando o fato de que Casanova (1999: 189 n. 1; 2004: 374 n. 16) está ciente da abordagem polissistêmica de Even-Zohar – ela até cita as “Leis da Interferência Literária” – Seu subsequente (2002) descarte por atacado do trabalho anteriormente feito pelos Estudos de Tradução parece bastante injusto.
10.Vide o site do Conselho do Canadá: “Além de apoiar a criação, tradução, publicação e promoção de literatura canadense, a Seção de Redação e Publicação financia residências de autores, leituras literárias e festivais, bem como novas áreas de trabalho. atividades como poesia rap, contação de histórias e literatura eletrônica” (http://​www​.can​-acacouncil​.ca​/writing/).
11.Em 1992, Marie-Claire Blais foi eleita para a Academia Real Belga de Língua e Literatura Francesa (Académie Royale de Langue et Littérature françaises de Belgique). Dois anos depois, ela se juntou às fileiras da Académie des lettres du Québec.
12.Minha tradução de: “Le peuple canadien-français parle … une forme avancée du franglais qui inquiète Étiemble, une forme intégrée, car les 190 millions d’anglophones pèsent lourd sur la grammaire et la syntaxe des cinq millions de francophones: ces derniers ont peu à peu inventé un créole, c’est-à-dire une langue de colonisé, pour se défendre, mais aussi sans que cela soit jamais l’oeuvre d’une conscience lucide” (Godbout 1994: 64). Quando René Étiemble (1964) atacou seus compatriotas por usarem muitas palavras inglesas por puro esnobismo, estava lutando contra um inimigo totalmente diferente do que o mencionado aqui, é claro. O uso de Godbout do termo “crioulo” é igualmente problemático.
13.Minha tradução de: “On confie à l’écrivain une certaine autorité sur la langue; il doit se montrer digne de l’exercer” (Savard 1953: 270) e “le meilleur, le plus clair, le plus pur, le plus expressif, le plus conforme au génie de sa langue” (1953: 271).
14.Minha tradução de: “Là sévissent en pleine liberté l’anglicisme américain, et tous les mots charriés pêle-mêle par les importations, les modes, le tourisme. Que si vous ajoutez à cela je ne sais quoi de relâché dans la tenue, de ramolli dans la prononciation, même de notre bourgeoisie, l’ensemble a de quoi nous inquiéter” (Savard 1953: 274).
15.[Nota do Tradutor] Respectivamente, “negócios”, “mendigo”, “bicicleta” e “carro”. Dada a referência do texto ser a tradução entre francês canadense e inglês, sempre que possível usaremos notas para traduzir os exemplos e citações, de modo a evitar acúmulos de referências e manter a clareza necessária.
16.…quanto mais avançávamos, menos longe íamos. Tínhamos o rosto coberto de mucosa e a poudrerie comprimindo nossos ouvidos…
  • Minha saliva já estava vermelha por causa das manchas, disse Baptiste, mas temos que buscar essas duas piastras, maudit. Eu não vim para o Up-Nose para pegar nozes!

  • O senhor Baptiste cavou tanto que eu não conseguia tirar a pá dos seus punhos; depois de três horas laboriosas chegamos aos degraus e a Lady Faber conseguiu abrir a porta: “Howlovely!Howlo – vely!…”, disse ela, “I can see the mountains…”. “Que bom”, eu disse “mas você tem que nos pagar pelo serviço. O velho senhor Baptiste está debilitado e agitado.”

  • Então entrem, my friends, dear fellows, disse ela, Venham e aqueçam-se. A empregada lhes preparará um café.

  • Então nós tomamos um gole de nosso café inglês. Havia a empregada, um cachorro chamado Puss-Puss a quem a senhora chamava carinhosamente de pussy darling, o chofer e nós dois. [Tradução nossa a partir de Blais 1973: 33–34,sic]

17.[Nota do Tradutor] “Fábrica de pólvora”, mas mais comumente a designação dada para a “neve levantada pelo vento como um pó fino”.
18.[Nota do Tradutor] “Pólvora”, mas também “neve fresca”.
19.Edmund Wilson (1965, p. 172–173) relata a história da frase “Vers huit heures du soir, a poudrerie éclata”, que se tornou a primeira tradução em inglês (por nova iorquina Hannah Josephson): “Perto das oito horas da noite explodiram os pulverizadores”. Veja também o ensaio de um dos tradutores posteriores de Roy, Joyce Marshall (1991, p. 30).
20.Ele não se sai melhor aos olhos de Joyce Marshall: “Manheim traduziu o joual no qual o livro é narrado por um jargão curioso, parte gramática ruim, parte gíria ultrapassada” (1991, p. 31).
21.Os tradutores, Berman argumenta, não estão necessariamente conscientes da violência que infligem a textos de outras culturas. O sistema de deformação que ele descreve opera “como uma série de tendências ou forças”, para as quais “todo tradutor está inevitavelmente exposto…, mesmo que ele (ou ela) seja animado por outro objetivo. Mais: essas forças inconscientes fazem parte do ser do tradutor, determinando o desejo de traduzir” (2004, p. 278).
22.Essa antiga noção escolástica (derivada dos hexis de Aristóteles via Tomás de Aquino) recebeu nova aplicação de Pierre Bourdieu (1985, p. 13), que define o habitus como um esquema de pensamento interiorizado social e culturalmente, “a disposição incorporada e quase-postural… de um agente atuante”. Como um hábito, um habitus é adquirido, não inato, mas diferentemente dos hábitos, que podem ser individuais e até idiossincráticos, habitus refere-se a disposições socialmente adquiridas. Os indivíduos os desenvolvem em contextos coletivos como famílias, escolas, ambientes de trabalho, todas as situações nas quais eles têm a oportunidade de aprimorar suas habilidades sociais: “o que o trabalhador come e, especialmente, a maneira como ele come, o esporte que ele pratica e o modo como ele o pratica, suas opiniões políticas e o modo como ele as expressa” (Bourdieu 1998: 8). Habitus adquiridos de forma diferente funcionam como “esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e divisão, gostos diferentes” (Bourdieu 1998: 8). Defendo que os textos que um tradutor escolhe traduzir e a maneira como os traduz são sinais de esquemas sociais similares incorporados.
23.Entre outras coisas, porque os franco-canadenses formaram uma sociedade autônoma antes de serem incorporados à América do Norte britânica e, como tal, são uma “minoria nacional”, no uso do termo por Will Kymlicka (1995: 19), enquanto “grupos étnicos” (imigrantes que deixaram sua comunidade nacional para entrar em outra sociedade) não são. Kymlicka sabe, e lamenta, que a distinção (a seu ver crucial) entre minorias nacionais e grupos étnicos é muitas vezes negligenciada pelos teóricos políticos estadunidenses.
24.Estou tão contente de te ver, chérie, deixe-me ajudá-la agora, e então, aqui está você, espero que possamos ter algumas semanas juntas… você está magra, tem trabalhado muito?
  • Où allons-nous,Lali?

  • Será uma viagem mais longa por causa da neve… mas você verá, c’est une surprise pourtoi…

  • Aqui estamos, penso eu, s’écria soudain Lali… Estamos fora da cidade… tome cuidado ao sair do carro, o vento é forte…Tu vois ce restaurant avec a luz vermelha? Quelqu’un nous attend là…

    [Tradução nossa a partir de Blais 1978: 74–75, sic]

25.O status excepcional da estratégia de “não-tradução” de Ray Ellenwood não pode ser enfatizado o suficiente. Diante de um desafio semelhante, ao traduzir o prólogo bilíngue de Tres tristes tigres, Donald Gardner e Suzanne Jill Levine também decidiram deixar o espanhol, mas com uma inversão. Enquanto o original muda do espanhol para o inglês, a sua tradução inverte essa ordem e sistematicamente coloca a sentença inglesa diante da versão espanhola: “¡Arriba el telón! Curtains up!” Torna-se assim “Curtains up! Arriba el telón!”, Sem o ponto de exclamação invertido típico do espanhol (Cabrera Infante 1965: 17; 1971: 7). Tal reversão não é insignificante, pois amortece de forma eficaz o impacto da língua estrangeira em um leitor de língua inglesa que agora só é passivamente confrontado com uma tradução em espanhol do que acabou de ler em seu próprio idioma.
26.Tradução nossa: [on demande à toi et moi se fossemos Judeus… ils ont dit eles não nos puniriam”] – [perguntaram a você e a mim if we were Jewish… eles disseram they wouldn’t punish us]. Nota do autor: The Montreal star, May 26th, 1979: E3, citado em Godard (1999: 509 e 517).

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Refraction and recognition: Literary multilingualism in translation

Abstract

Texts foregrounding different languages pose unusual challenges for translatorsand translation scholars alike. This article seeks to provide some insights into what happens to multilingual literature in translation. First, Antoine Berman’s writings on translation are used to reframe questions of semantic loss in terms of the ideological underpinnings of translation as a cultural practice. This leads to a wider consideration of contextual aspects involved in the “refraction” of foreign languages, such as the translating literature’s relative position in the “World Republic of Letters” (Casanova). Drawing on a Canadian case-study (Marie-Claire Blais in English translation), it is suggested that asymmetrical relations between dominating and dominated literatures need not be negative per se, but can lead to the recognition of minority writers.

Keywords:
  • multilingualism and literature,
  • translation,
  • minorities in literature,
  • French-Canadian Literature (1900–1999),
  • Marie-Claire Blais,
  • Ralph Manheim,
  • Ray Ellenwood,
  • Antoine Berman,
  • Pierre Bourdieu,
  • Pascale Casanova

Résumé

Les textes frappés au sceau de la diversité linguistique posent un défi aux traducteurs et aux traductologues. Cet article tente de comprendre ce qui arrive aux textes plurilingues en traduction. D’abord, ‘l’analytique’ développée par Antoine Berman permet de mesurer les pertes sémantiques à l’aune des enjeux idéologiques qui sous-tendent la traduction comme pratique culturelle. Suit une prise en compte plus large des aspects contextuels de la ‘réfraction’ des langues étrangères, dont notamment la position relative de la littérature traduisante dans la ‘République mondiale des Lettres’ (Casanova). À partir d’un dossier canadien (la traduction de Marie-Claire Blais en anglais), on suggère que les relations asymétriques entre littératures dominantes et dominées n’ont pas à être négatives en soi, mais peuvent mener à la reconnaissance d’écrivains minoritaires.

Mots-cléfs :
  • multilinguisme et littérature,
  • traduction,
  • minorities in littérature,
  • littérature canadien français (1900–1999),
  • Marie-Claire Blais,
  • Ralph Manheim,
  • Ray Ellenwood,
  • Antoine Berman,
  • Pierre Bourdieu,
  • Pascale Casanova

Endereço de correspondência

Rainier Grutman

University of Ottawa

Département des lettres françaises

School of translation and interpretation

60, University

OTTAWA, Ontario K1N 6N5

Canada

[email protected]